"Enquanto houver uma pessoa em risco ou em abandono escolar precoce, é preciso criar condições para inverter a situação"

O abandono escolar precoce é uma preocupação persistente em muitos sistemas educativos em todo o mundo. Em Portugal, este tema tem sido objeto de análise e intervenção, para garantir que os jovens tenham acesso a uma educação completa e de qualidade. A pandemia trouxe desafios adicionais a esse cenário já complexo, levantando uma questão pertinente: terá a taxa de abandono escolar aumentado no nosso país?

 

Para compreender esta situação e explorar possíveis soluções, Vitor Tomé, especialista em abandono escolar, que esteve recentemente com a Fundación MAPFRE em Madrid num evento realizado no âmbito do projeto ENDING* (ICT & Early School Leaving. Developing a New Methodology to Empower Children in Digital WellbeIng and Critical ThiNkinG), falou connosco sobre a influência da pandemia nas taxas de abandono escolar, as fases mais críticas em que ocorre o abandono, as estratégias para enfrentar essa realidade e a visão de uma escola ideal que poderia ajudar a combater esse problema.

 

Vitor Tomé FM
Vitor Tomé, consultor internacional e especialista em abandono escolar

 

1 - O abandono escolar em Portugal piorou com a pandemia?

A taxa de abandono escolar precoce (TAEP) é a percentagem de jovens entre os 18 e os 24 anos que não completaram o Ensino Secundário e já não estudam nem frequentam qualquer formação. Logo, mesmo que um jovem pare de estudar aos 15 anos (9.º ano), e decida ingressar no Secundário depois aos 20 anos (por exemplo num curso profissional), não estará em abandono escolar precoce.

Segundo o Instituto Nacional de Estatística, Portugal reduziu a TAEP para 8,9% em 2020, tendo estabilizado em 2022 nos 6%. Como a União Europeia tem como objetivo reduzir a TAEP para 9% ou menos em 2030, Portugal atingiu esse objetivo 10 anos antes e em pandemia.

 

2 - Em que fase se abandona mais a escola?

Temos que ter em conta vários fatores. Por um lado, analisamos a taxa de retenção e desistência (percentagem de alunos matriculados que reprovam ou desistem), a qual aumenta à medida que avançamos nos ciclos (1,8% no 1.º Ciclo, 3,1% no 2.º Ciclo, 4,5% no 3.º Ciclo e 8,6% no Secundário).No Secundário, considerando todas as modalidades de ensino, reprova-se e/ou desiste-se mais no 12.º ano (12,9%) que no 10.º ano (8,4%) ou no 11.º ano (3,7%).

Por outro lado, a taxa real de escolarização (percentagem de alunos matriculados por ciclo de ensino, em idade normal de frequência desse ciclo, comparada com a população dos mesmos níveis etários) era, em 2022, de 93,3% (100% no 1.º Ciclo, 90,5% no 2.º Ciclo, 93,7% no 3.º Ciclo e 88% no Secundário). Em tese, há mais alunos a deixar a escola à medida que se avança no ciclo de ensino.

Mas esta taxa só considera os estudantes em função da idade normal em cada ciclo. Uma aluna de 17 anos que frequente o 9.º ano não é considerada no 3.º Ciclo, pois já deveria estar no Secundário. Mas ela está na escola, como mostra a taxa bruta de escolarização (percentagem de alunos por ciclo face à população em idade normal para o frequentar), que é superior a 100% em todos os ciclos de ensino. Ou seja, apesar de terem sido retidos ou desistido pelo menos um ano, há muitos estudantes que continuam na escola ou em formação. E é isso que explica a razão da TAEP ser de 6% em Portugal.

 

3 - Como se pode contrariar o abandono escolar?

Com uma estratégia integrada, do Pré-escolar até ao 12.º ano, e ao Ensino Superior. Em 1992 a TAEP em Portugal era de 50% e ao longo dos anos foram definidas sucessivas políticas que, apesar de algumas interrupções e/ou alterações, contribuíram para o resultado atual.

Com o Portugal 2020 (acordo de parceria entre Portugal e a União Europeia), foi possível: diversificar a oferta formativa em termos de ensino profissional e artístico; criar cursos de educação/formação para maiores de 15 anos; criar a dupla certificação no Secundário; ter cursos de pós-secundário que permitiram a muitos terminar o 12.º ano (e até entrar no Ensino Superior). Foram criados e implementados: o Programa Nacional de Promoção do Sucesso Escolar, os Planos Integrados e Inovadores de Combate ao Insucesso Escolar, continuou o programa "Territórios Educativos de Intervenção Prioritária", foi dada formação a todos os agentes educativos e a criados os serviços de psicologia e orientação. E podemos juntar a estes programas o Plano Escola+ 21-23 e o Plano de Transição Digital.

 

4 - Que consequências pode ter o abandono escolar para Portugal?

O abandono escolar precoce tem como resultado pessoas menos qualificadas e preparadas para a vida ativa, o que reduz o potencial de um país em termos de produtividade, criatividade e até de inovação. E é mais grave para as pessoas, pois ficam sem ferramentas básicas para uma vida digna. Enquanto houver uma pessoa em risco ou em abandono escolar precoce, é preciso criar condições para inverter a situação. Ora, a média europeia é de 9,7%. Há muito trabalho pela frente.

 

5 - Que escola seria ideal para evitar o abandono?

Entendendo aqui a escola no sentido lato, precisamos de uma escola inclusiva. Que não deixe ninguém para trás, que seja democrática nos conteúdos e na governança, que promova e garanta a aprendizagem ao longo da vida, que forme profissionais qualificados mas, mais do que isso, que forme cidadãos cujos valores, atitudes, capacidades e conhecimentos lhes permitam ser competentes nos diferentes papéis sociais que têm de assumir.

 

Projeto ENDING

*O projeto ENDING insere-se no programa ERASMUS+ da União Europeia e é desenvolvido por um consórcio de cinco entidades europeias: Universidade Politécnica do Porto, Stiftung Digitale Chancen, Pantallas Amigas, Policía Nacional e Fundación MAPFRE. Destina-se a alunos entre os 11 e os 14 anos de idade e o seu objetivo é prevenir e reduzir as taxas de abandono escolar precoce, incentivando as crianças a fazer um bom uso das tecnologias de informação e a desenvolver o pensamento crítico. Para atingir este objetivo, o projeto desenvolve uma nova metodologia baseada na aprendizagem entre pares e no envolvimento dos professores e das famílias no processo. Desta forma, pretende-se garantir que, com base na formação e na participação ativa das crianças, elas próprias possam identificar os riscos envolvidos na má utilização das tecnologias e na desinformação. O resultado é a criação de uma metodologia que pode ser implementada de forma autónoma pelas escolas, garantindo assim a sua sustentabilidade ao longo do tempo.

 

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